Durante a manhã sempre era a mesma rotina:
Dar comida para as galinhas e limpar o quintal das folhas das árvores que caíram durante a noite após a ventania. Porém, este dia foi diferente: Ela olhou no poço que estava adiante de si e visualizou uma pedra azul escura, diferente de tudo o que ela já tinha visto no quintal. Esta pedra, após observada, estava cheia de marcações estranhas. Chamou sua filha para mostrar o que tinha encontrado e sua filha, desesperada disse com voz embargada: Isto são escritos sumérios!!!
"Sumérios?! Mas o que é isso, minha filha? E por que tanto desespero?" a mãe perguntou, confusa pela intensidade da reação da filha. Ela se inclinou sobre o poço, a curiosidade agora superando a familiaridade com a rotina matinal.
Sua filha, Ana, já estava de joelhos na beira do poço, os olhos arregalados e fixos na pedra azul escura que reluzia fracamente no fundo da água. Era como se o tempo tivesse parado, o vento que antes derrubava as folhas agora parecia sussurrar segredos antigos.
"Mãe, você não entende! Escritos sumérios... isso é uma das civilizações mais antigas da Mesopotâmia, com mais de cinco mil anos! O que uma pedra dessas estaria fazendo aqui, no nosso quintal, dentro do poço? É... é impossível, uma anomalia! Se for autêntica, isso muda tudo o que sabemos!" A voz dela tremia, mas não de frio, e sim de uma mistura de espanto e apreensão.
"Impossível ou não, está aqui", a mãe retrucou, sempre prática, sem conseguir tirar os olhos da pedra misteriosa. "Consegue tirar? Parece pesada."
Ana estendeu a mão lentamente, hesitante, como se temesse tocar a rocha. A água estava fria, mas quando seus dedos roçaram a superfície da pedra, uma leve corrente, quase um zumbido, percorreu seu braço. As marcações estranhas, que antes pareciam apenas riscos, agora pareciam vibrar sob o toque, como se respondessem.
Ela puxou a mão de volta bruscamente, com um arrepio. "Parece... quente e fria ao mesmo tempo. E eu senti algo, Mãe. Como uma... energia. Uma pulsação."
"Energia? Não é febre, não?" a mãe perguntou, aproximando-se mais, com uma preocupação mais mundana, mas seus olhos também estavam magneticamente atraídos para o brilho sutil da pedra.
"Não, não é febre! É como se a pedra estivesse... viva. Precisamos tirar isso daqui, Mãe. E rápido. Mas não sei como. É muito fundo, e não temos equipamentos para puxar algo tão pesado e, francamente, tão antigo."
A mãe observou a filha e a pedra. O sol da manhã agora batia diretamente no poço, revelando ainda mais detalhes das inscrições complexas e do azul profundo da pedra. Um silêncio carregado pairou sobre o quintal, que antes era apenas o palco de uma rotina diária e agora se tornara o centro de um mistério milenar.
"Bem", a mãe disse, quebrando o silêncio, sua voz tentando soar mais calma do que ela se sentia. "Se é tão importante assim, vamos ter que dar um jeito. Mas primeiro, ninguém mais pode saber sobre isso. Ninguém. Entendeu, Ana?" Seus olhos encontraram os da filha, e havia uma gravidade silenciosa no pedido. "Isso fica entre nós."
Não demorou muito tempo e algo inusitado estava acontecendo sobre suas cabeças: O que era incomum naquela localidade ao sul de Minas Gerais, num vilarejo pacato, era o sobrevoo de hepicópteros. Elas ficaram assustadas sem entender o que estava acontecendo.
O zumbido distante transformou-se rapidamente num rugido ensurdecedor, e as pás dos helicópteros começaram a cortar o ar pesado do quintal, levantando uma nuvem de poeira e folhas secas. Não era um, mas três máquinas escuras, voando baixo, com um propósito evidente. O silêncio da manhã pacata foi estraçalhado.
"Mãe! O que é isso?", Ana gritou, sua voz quase inaudível por cima do barulho infernal, os braços instintivamente cobrindo a cabeça. Seus olhos procuravam freneticamente os da mãe, um terror agora muito mais palpável do que a admiração acadêmica.
A mãe, apesar do susto, agiu com a rapidez que só a experiência de uma vida no campo proporciona. Ela agarrou o braço de Ana. "Corre! Para dentro da casa, agora! E não faça barulho!"
Enquanto puxava a filha em direção à porta da cozinha, seus olhos desviaram-se por um instante para o poço. A pedra azul escura, mesmo submersa, parecia brilhar com uma intensidade maior, quase como um farol, sob a sombra ameaçadora das aeronaves. Seria possível? Será que os helicópteros estavam ali por causa dela? A hipótese parecia absurda, mas o *timing* era… perturbador.
Elas mal conseguiram se esgueirar para dentro da pequena casa de taipa e madeira quando um dos helicópteros pairou diretamente sobre o quintal, tão baixo que o vento das pás fez a terra tremer e as telhas da varanda estalarem. Pela fresta da cortina puída, Ana e a mãe observavam, encolhidas no chão empoeirado da sala.
Puderam ver uma luz forte, como um holofote potente, varrendo o quintal, focando perigosamente perto do poço. Em seguida, uma voz metálica e distorcida, amplificada por um alto-falante, ecoou por todo o vilarejo, mas claramente direcionada à propriedade delas.
"Moradores da residência número 37! Permaneçam dentro de suas casas! Não há perigo. Estamos realizando uma varredura de rotina na área!"
A mãe apertou a mão de Ana, que estava fria e tremia. "Rotina? Varredura de rotina com três helicópteros militares na roça?", ela murmurou, descrença e uma dose crescente de pânico em sua voz. "Eles não querem fazer uma varredura de rotina, Ana. Eles estão procurando por alguma coisa. E tenho um pressentimento muito ruim de que essa coisa está lá fora, naquele poço."
Ana assentiu, os olhos arregalados de horror. "Eles *sabem*, Mãe. De alguma forma, eles sabem que a pedra está aqui. É a única explicação. É por isso que ela é um mistério, uma anomalia. Não era para ela estar aqui. E agora, parece que o mundo veio atrás dela."
O holofote continuava a vasculhar, agora mais sistematicamente, aproximando-se do poço. A mãe e a filha se entreolharam, um entendimento silencioso e aterrorizante passando entre elas. O segredo que a mãe havia pedido para ser guardado já não era mais apenas delas. Estavam no centro de algo muito maior do que poderiam imaginar. Eram agora as guardiãs de um mistério que a humanidade, ou pelo menos uma parte dela, parecia desesperada para controlar. A questão agora não era apenas como tirar a pedra do poço, mas como escondê-la da iminente invasão.
Surpreendentemente surgiu no mesmo quintal suvs pretas com letras escritas em inglês, eram 5 Suvs que ferozmente invadiram aquele quintal que ora era pacato e sem barulho e começaram a atirar com armas pesadas contra os helicópteros militares. Foi uma carnificina: Brutalmente os helicópteros foram abatidos e as Suvs saíram em alta velocidade sumindo na poeira daquela rua rural. Ana e sua mãe não entenderam nada. O que foi isso? O que aconteceu aqui? Rapidamente elas correram para o poço e cobriram a pedra misteriosa com a água do riacho que passava próxima do poço. A pedra ficou submersa. O volume de água conseguiu esconder profundamente aquele artefato misterioso. Eles poderiam voltar: Os da Suvs e talvez esta pedra poderia cair em mãos erradas.
O silêncio que se seguiu ao rugido dos helicópteros e aos tiros brutais não era o silêncio pacato do vilarejo que Ana e sua mãe conheciam. Era um silêncio pesado, carregado de terror e de um cheiro acre de fumaça, metal retorcido e terra revolvida. O quintal, antes um refúgio de rotina, parecia agora um campo de batalha abandonado, pontilhado por destroços fumegantes das aeronaves militares.
Ana e a mãe emergiram da casa, esgueirando-se como sombras assustadas. Os olhos de Ana estavam fixos nos destroços, nas hélices dilaceradas, nos pedaços de fuselagem que jaziam espalhados entre as galinhas agora atordoadas, que cacarejavam nervosamente. O horror era tão palpável que ela mal conseguia respirar.
"Mãe... o que... o que foi isso?", a voz de Ana era um fio, quebrada. Ela se virou para a mãe, buscando alguma explicação no olhar dela, mas só encontrou o mesmo desconcerto, o mesmo pavor silencioso.
A mãe, apesar do choque, manteve uma compostura estranha, quase robótica. Ela olhou para os helicópteros destruídos, depois para o caminho rural onde as SUVs pretas haviam desaparecido, levantando uma nuvem de poeira vermelha que ainda se dissipava preguiçosamente. Por fim, seus olhos caíram sobre o poço, a água do riacho agora uma fina camada turva cobrindo o fundo escuro.
"Não sei, minha filha", a mãe murmurou, a voz áspera. "Mas uma coisa eu sei: eles estavam procurando por isso." Ela apontou para o poço com um gesto vago, como se o segredo ali escondido fosse uma chaga ardente. "E o que quer que seja, parece que o mundo inteiro quer botar as mãos. E não são pessoas boas, Ana. Não são."
O corpo de Ana estremeceu. "As SUVs... aquelas letras em inglês... quem eram eles? Outro grupo? Um grupo oposto aos helicópteros? Isso é... uma guerra por essa pedra, Mãe? Aqui, no nosso quintal?" A ideia era tão absurda, tão fora da realidade que ela conhecia, que parecia um pesadelo.
"Não importa quem eram, importa que atiraram pra matar", a mãe disse, a praticidade afiada de sua natureza voltando à t tona, misturada com uma urgência palpável. "Eles vão voltar. Ou os outros vão. Temos que sair daqui, Ana. Agora."
"Sair? Mas para onde, Mãe? E a pedra? Não podemos simplesmente deixar aqui. É... perigosa. Mas também... inestimável. Uma parte da história da humanidade. Se caísse nas mãos erradas...", Ana gaguejou, a mente de acadêmica lutando com o instinto de sobrevivência.
"Mãos erradas já estavam no quintal, minha filha! E as 'mãos certas' voavam em helicópteros e foram abatidas como moscas!", a mãe retrucou, um raro tom de histeria começando a aflorar em sua voz. Ela se aproximou do poço, seus olhos vasculhando a superfície da água. "Essa pedra... não é só história. É problema. Problema grande. E agora que a escondemos, precisamos dar um jeito de tirá-la daqui. Para bem longe."
Ana olhou para a água turva do poço, onde o artefato ancestral repousava, invisível aos olhos, mas uma presença pesada, quase palpável. A energia que ela havia sentido antes parecia ecoar no ar, um zumbido sutil sob o silêncio. "Mas como vamos tirar? E se eles perceberem que a cobrimos? E se a água do riacho não for suficiente?"
Um farfalhar repentino na mata vizinha as fez prender a respiração. Ambas congelaram, os olhos arregalados. O silêncio, que antes era pesado, agora se tornara assustador, cada som, cada sussurro do vento na folhagem, parecendo uma ameaça iminente.
"Para dentro, Ana. Rápido!", a mãe sussurrou, puxando a filha com força. "E desta vez, trancamos tudo. E não saímos até que tenhamos um plano. Ou até que o sol se ponha e a escuridão nos dê alguma... vantagem. Não podemos deixar a pedra cair nas mãos de ninguém. Nem dos que voam, nem dos que atiram das caminhonetes. Ela é nossa agora. E nós somos as únicas que sabemos o que realmente aconteceu aqui."
Enquanto se refugiavam novamente na pequena casa, a mãe pegou um velho rifle de caça que ficava pendurado na parede da cozinha. Ela não o usava há anos, mas a forma como o segurava, os nós dos dedos brancos, mostrava uma determinação que Ana nunca havia visto antes. A quietude da noite que se aproximava prometia ser longa, e o destino daquele pequeno vilarejo, e talvez de algo muito maior, agora repousava nas mãos de uma mãe prática e sua filha aterrorizada, guardiãs de um segredo milenar no fundo de um poço. A primeira batalha havia terminado, mas a guerra pela pedra azul escura estava apenas começando.
Não demorou muito e as autoridades competentes da cidade vieram ver o que aconteceu e fazer as devidas diligencias. O delegado, atônito, não conseguia acreditar no que estava vendo: Helicópteros destroçados em sua pacata cidade, e pior, Helicópteros militares! Não vai demorar muito para os da patente alta chegarem por aqui. Com certeza, o Governo Federal vai mandar os agentes federais para investigar esta bagunça. E aqui deve ter coisa grande, muito grande, analisou ele...
Dona Isaura, Ana! Gritou ele para elas, antigas conhecidas dele... Muitas vezes ele ia na casa delas para tomar o café com bolo de milho da Dona Isaura... Elas ficaram atônitas e sem saberem o que responder...
O chamado do delegado Silva, com sua voz grave e familiar, soou como um tiro no silêncio tenso que se instalara na pequena casa. Dona Isaura e Ana congelaram, o rifle ainda apertado nas mãos da mãe. Era o Delegado Silva, um homem que conheciam desde que Ana era criança, alguém que partilhava risadas e café em sua varanda. Ignorá-lo seria impossível, e suspeito.
"Ele sabe que estamos aqui", Ana sussurrou, o pavor substituindo a adrenalina em seu rosto pálido.
Dona Isaura respirou fundo, soltando o ar lentamente, como se estivesse se preparando para um mergulho em águas profundas e perigosas. "Vá para a porta, Ana. Não saia. Deixe-me falar com ele." Ela guardou o rifle atrás de um armário, um brilho de determinação em seus olhos que dizia a Ana para não questionar.
Com passos hesitantes, Ana foi até a porta, espiando pela fresta. O quintal era um cenário de destruição: fumaça ainda subia dos destroços dos helicópteros, a terra estava revirada e pontilhada por cacos de metal. Além dos escombros, o Delegado Silva, com seu uniforme um tanto amarrotado e o chapéu de feltro empurrado para trás na cabeça, estava lá, conversando com outros dois policiais que inspecionavam os arredos com expressões igualmente atônitas. Ele parecia ter envelhecido dez anos em questão de minutos.
Dona Isaura abriu a porta com cautela, forçando um semblante de choque e surpresa que não era totalmente falso. Afinal, a cena era realmente inacreditável.
"Silva! Meu Deus, o que aconteceu aqui?", ela exclamou, sua voz embargada, simulando um susto ainda maior do que o que sentia. Ela abraçou o próprio corpo, como se o frio da noite iminente estivesse a castigando. "Que bagunça é essa? Meu quintal! Viemos correndo para dentro assim que o barulho começou. Os tiros... parecia o fim do mundo!"
O Delegado Silva se virou, aliviado ao vê-las, mas ainda visivelmente abalado. "Dona Isaura! Ana! Graças a Deus vocês estão bem!" Ele apressou o passo em direção à casa, seus olhos vasculhando o terreno. "Foi... foi horrível. Nunca vi nada parecido em toda a minha carreira. Helicópteros militares caídos! E aquelas... aquelas SUVs pretas sumiram como fantasmas. Vocês viram alguma coisa? Viram quem estava atirando?"
Ana, de pé ao lado da mãe, engoliu em seco. A mentira deveria ser convincente. "Não, Delegado. Assim que ouvimos os primeiros tiros, a Mãe me puxou para dentro. Ficamos encolhidas no chão, rezando para que acabasse. Estava um barulho infernal, não dava para ver nada pela janela." Ela olhou para a mãe, buscando aprovação silenciosa.
Dona Isaura assentiu, com os olhos fixos nos destroços fumegantes. "Foi tudo muito rápido, Silva. Aqueles helicópteros estavam voando tão baixo, e de repente... o tiroteio. Não deu tempo de ver quem ou o quê. Só o medo. Muito medo." Ela tocou o braço do delegado, com um olhar de preocupação genuína misturado à dissimulação. "Quem faria uma coisa dessas? E por quê? Aqui na nossa roça?"
O Delegado Silva suspirou pesadamente, tirando o chapéu e passando a mão pela cabeça. "É o que todos nós queremos saber, Dona Isaura. Isso não é coisa de bandido comum, não. Isso é... grande. Muito grande. Já acionei a central. Não vai demorar para o Exército e a Polícia Federal estarem por aqui. E eles não vão gostar nem um pouco do que vão encontrar." Ele lançou um olhar significativo para o céu, como se esperasse mais invasores a qualquer momento.
Seu olhar então varreu o quintal novamente, passando rapidamente pelo poço coberto com a água do riacho. Por um instante, Ana sentiu o coração parar. Ele notaria? A água do riacho era diferente da água do poço? A escuridão crescente da noite, no entanto, já começava a engolir os detalhes, e o Delegado parecia mais focado nos destroços e na iminente chegada das "autoridades superiores".
"Eu preciso que vocês duas fiquem dentro de casa. Não saiam por nada, entenderam?", ele instruiu, a voz cheia de autoridade. "Quando os federais chegarem, eles farão perguntas. Repitam o que me disseram: que viram os helicópteros, ouviram os tiros, mas não viram quem atirou e se esconderam. Não deem mais detalhes que isso, pode ser perigoso."
Dona Isaura e Ana assentiram prontamente, o alívio misturado à preocupação. O Delegado, em sua bondade e familiaridade, sem querer, havia lhes dado o script perfeito.
"Bem, eu tenho que ir. Preciso isolar a área. Fiquem seguras." Ele se virou, indo ao encontro dos outros policiais.
Mãe e filha se entreolharam. O perigo não havia sumido, apenas mudado de forma. Os olhares do Delegado Silva, embora bem-intencionados, carregavam o peso da ignorância sobre o verdadeiro motivo daquela carnificina. E agora, com a iminente chegada de agentes federais, a tarefa de proteger a pedra e o segredo que ela guardava se tornava ainda mais complexa e urgente.
"Ele não desconfia de nada", Ana sussurrou assim que a porta foi fechada e trancada novamente.
"Não", Dona Isaura concordou, sua voz baixa e tensa. "Mas os que vêm depois dele... esses não vão ser tão fáceis de enganar. Eles vêm de fora, não conhecem a gente. E vêm para vasculhar cada canto. Precisamos agir, Ana. Não podemos ficar sentadas esperando que eles encontrem a pedra. Mas como? Como vamos tirar algo tão grande e pesado sem que ninguém veja, e para onde vamos levar?"
Ana olhou para a velha lanterna a querosene que iluminava a sala com uma luz fraca e bruxuleante. Sua mente de estudiosa fervilhava com a impossibilidade da situação, mas seu instinto de sobrevivência e a urgência nos olhos da mãe a impulsionavam. "Talvez... talvez não precisemos tirar a pedra inteira, Mãe. Talvez... se ela é tão importante, ela deve ter um propósito. Uma função. E se o que eles procuram não é a pedra em si, mas o que ela faz? Ou o que ela *contém*?"
Dona Isaura a encarou, uma faísca de algo novo nos seus olhos, algo além do medo e da praticidade. "O que você quer dizer, minha filha? Que a pedra não é só uma pedra?"
Ana se aproximou da mesa, pegando um dos velhos cadernos da mãe e um lápis. "Aqueles escritos sumérios, Mãe. Cuneiformes. Não são apenas desenhos. São uma linguagem. Informação. E a energia... que eu senti. E se a pedra for uma espécie de... invólucro? Ou um dispositivo?" Ela começou a rabiscar freneticamente, tentando conectar os pontos de tudo o que sabia sobre civilizações antigas e tecnologia desconhecida. "O que quer que seja, Mãe, não era para estar na Mesopotâmia, e muito menos no nosso poço. É como se tivesse sido... deixado aqui. Ou trazido. E agora, depois de milênios, acordou. E atraiu a atenção de todo mundo."
A mãe se sentou na cadeira em frente à filha, o rifle ainda em sua mente. "Então, o que a gente faz com um 'dispositivo' sumério que atrai aviões e caminhonetes armadas?"
Ana levantou o olhar do caderno, seus olhos encontrando os da mãe, cheios de uma mistura de terror e uma curiosidade quase insana. "Eu não sei, Mãe. Mas uma coisa é certa: se é perigoso deixar a pedra aqui, pode ser ainda mais perigoso tirar. E se a gente não tiver escolha? E se, para sobrevivermos, tivermos que... desvendar o mistério dela antes que eles cheguem?"
A noite caía pesada sobre o vilarejo, trazendo consigo o cheiro de destruição e um silêncio perturbador. Na pequena casa, mãe e filha, cercadas pelo mistério e pela ameaça, começavam a se preparar não apenas para a próxima batalha, mas talvez para o próximo passo na evolução de um segredo tão antigo quanto a própria humanidade.
Infelizmente seus planos não poderiam ir adiante devido à enorme quantidade de curiosos que estavam ali e pelo jeito, não tinham hora de irem embora.
Ana e sua mãe tomaram uma decisão que poderia até salvar suas vidas:
Ir embora daquele lugar e nunca mais voltar!
A constatação atingiu Dona Isaura e Ana como um golpe frio. Lá fora, o burburinho dos curiosos crescia, transformando a quietude noturna em um palco indesejado. Luzes de lanternas dançavam pelo quintal, iluminando os destroços dos helicópteros e, perigosamente perto, a área em volta do poço. Vizinhos, antes conhecidos por suas risadas e fofocas inofensivas, agora se aglomeravam, chocados e ávidos por detalhes do inusitado espetáculo. Era impossível pensar em qualquer plano ousado para mover a pedra. Cada movimento delas dentro de casa seria notado, cada sombra interpretada.
"Não dá, Mãe", Ana sussurrou, a voz embargada, os olhos fixos na fresta da cortina. "Tem gente demais lá fora. E mais vão chegar. Não temos como nos aproximar do poço, muito menos mover a pedra sem que todo o vilarejo veja."
Dona Isaura apertou o rifle em suas mãos, o calor do metal frio um contraste com a fúria impotente que sentia. Ela havia lutado sua vida inteira contra as adversidades do campo, mas esta era uma batalha para a qual não tinha preparo. Proteger a pedra era uma coisa, mas se entregar ou morrer por ela, com a filha a reboque, era outra.
"Eles vão chegar", a mãe disse, a voz baixa, mas carregada de uma gravidade que Ana conhecia. "Os federais. E eles não vão parar até revirar cada pedra, cada palmo desse quintal. Se ficarmos aqui, Ana, vamos ser questionadas. E cedo ou tarde, por mais que mintamos, eles vão sentir que há algo mais. Vão encontrar a pedra."
O coração de Ana afundou. A ideia de que o artefato sumério, tão antigo e misterioso, pudesse cair nas mãos do governo, ou de qualquer um dos grupos violentos que haviam se enfrentado no quintal, era insuportável. Era como entregar um pedaço da própria alma. Mas a alternativa...
"E o que a gente faz, Mãe?", Ana perguntou, o desespero borbulhando. "Fugimos? Abandonamos tudo? A casa? A pedra?"
Dona Isaura se aproximou da filha, pegando suas mãos frias. Os olhos dela, geralmente tão pragmáticos, agora brilhavam com uma dor profunda, mas também com uma determinação inabalável. "Essa casa... esse quintal... já não são mais nossos, Ana. Não enquanto essa pedra estiver aqui. E enquanto formos as únicas a saber sobre ela. Nossa vida, nossa paz, tudo se foi com o barulho daqueles helicópteros. Para salvar nossas vidas, para ter uma chance de lutar outro dia... temos que ir. E temos que ir agora."
A decisão foi tomada em meio a um silêncio carregado, mais pesado do que o barulho dos curiosos lá fora. Era uma despedida dolorosa, um adeus a uma vida inteira de rotina e segurança. Elas pegaram o mínimo: uma mochila com algumas roupas, documentos, e o pouco dinheiro que Dona Isaura guardava. A lanterna a querosene foi apagada, e a escuridão da casa as abraçou, um presságio sombrio do futuro incerto.
Dona Isaura abriu a porta dos fundos com a máxima cautela, revelando o caminho estreito que levava à mata nos fundos do terreno. O cheiro de terra molhada e mato úmido as envolveu. "Pela mata", ela sussurrou. "Ninguém vai nos ver por lá."
Antes de dar o primeiro passo, Ana se virou. Seu olhar, guiado pela fraca luz da lua, buscou o poço. A água do riacho, que cobria a pedra, parecia uma mortalha para o segredo que ela guardava. Uma lágrima escorreu pelo rosto de Ana. Deixar a pedra para trás era um ato de rendição, mas também de esperança. Se ela era um "dispositivo", como Ana imaginava, talvez sua natureza oculta a protegesse, pelo menos por enquanto.
"A pedra...", Ana começou, a voz um fio.
"Ela vai esperar", Dona Isaura concluiu, um eco de promessa e dor em suas palavras. "Não podemos levá-la. Não agora. Mas um dia... um dia voltaremos. Ou encontraremos um jeito. Por agora, nossa vida é mais importante. E a vida dela também."
Mãe e filha se esgueiraram pela mata, suas silhuetas sumindo rapidamente entre as árvores e os arbustos densos. O farfalhar das folhas sob seus pés era o único som, abafado pelos murmúrios distantes do vilarejo e a luz incansável das lanternas no quintal que, em breve, seria invadido por forasteiros. Elas estavam deixando tudo para trás: sua casa, sua rotina, e o mistério milenar que havia transformado suas vidas em um piscar de olhos. Fugitivas, guardiãs de um segredo que não podiam mais proteger, elas se lançavam no desconhecido, com a amarga promessa de nunca mais voltar... a menos que fosse para reivindicar o que era delas.
O Delegado Silva, ainda no quintal, supervisionando a cena caótica, notou um grupo de curiosos apontando para a mata nos fundos da propriedade. "Acho que vi um vulto ali!", disse um deles, com a voz alterada. O Delegado franziu a testa, mas sua atenção foi desviada por luzes de veículos se aproximando rapidamente pela estrada rural. Eram as autoridades federais. Dezenas de carros pretos e vans militares se aproximavam, e o barulho dos motores e sirenes silenciou de vez os murmúrios dos moradores. O show estava prestes a começar, e Isaura e Ana não estariam lá para assistir. Elas já estavam longe, desaparecendo na escuridão, levando consigo o peso de um segredo que agora era um fardo, mas também a única esperança.
Mãe, nós vamos para a casa da tia Onildes, lá na cidade. Ela nos acolherá por enquanto até vermos o que poderemos fazer. E, mãe, como ela gosta muito de nós, ela vai compreender que o afastamento da nossa casa foi devido a todo esse movimento militar que poderia atingir nossas vidas. Essa seria a desculpa mais acertada...
A decisão, embora dolorosa, foi um alívio momentâneo para a mente sobrecarregada de Ana e o pragmatismo de Dona Isaura. Fugir. Deixar tudo para trás, pelo menos por agora.
A mata nos fundos do quintal era um labirinto de sombras e sons noturnos. Cada galho que estalava sob os pés, cada farfalhar de folhas secas, parecia amplificado pelo silêncio opressor que se seguiu à carnificina no quintal. O ar era pesado e úmido, impregnado com o cheiro de terra, folhagem molhada e, persistentemente, a fumaça distante dos helicópteros abatidos. Ana, que mal saía da rotina da casa para a biblioteca da cidade, sentia o coração acelerar a cada escorregão, a cada raiz saliente que ameaçava derrubá-la. Dona Isaura, por sua vez, movia-se com a familiaridade de quem já enfrentou a escuridão do campo, mas a urgência e o medo davam um passo incomum ao seu ritmo.
Elas caminharam por horas, desviando-se de trilhas maiores, escolhendo caminhos tortuosos que a mãe conhecia de antigas buscas por ervas ou animais. O cansaço era excruciante, mas o medo de serem seguidas, de terem suas vidas e o segredo da pedra expostos, impulsionava-as. As luzes e os sons da cidade surgiram no horizonte como um farol de esperança, mas também como um novo tipo de perigo: o de se misturar, de fingir normalidade quando o mundo delas havia desmoronado.
Finalmente, sob a fraca luz dos postes de rua, com as roupas sujas de terra e os rostos marcados pelo cansaço e pela ansiedade, elas chegaram ao modesto sobrado da Tia Onildes. O cheiro de café coado e pão de queijo, que antes lhes traria conforto, agora parecia um luxo distante e quase inatingível.
Dona Isaura bateu na porta com a mão trêmula, mas firme. Pouco tempo depois, a porta rangeu e Tia Onildes apareceu, o rosto redondo e enrugado expressando surpresa e, rapidamente, preocupação ao ver as duas mulheres à sua frente.
"Minha Nossa Senhora! Isaura! Ana! Mas o que houve com vocês, minhas filhas? Que horas são? Por que essa roupa suja? Entrem, entrem logo!", Tia Onildes exclamou, com sua voz carregada de um sotaque mineiro ainda mais acentuado. Ela abriu a porta por completo, os olhos escaneando as sobrinhas com uma mistura de curiosidade e carinho maternal.
Elas entraram, o contraste entre o frio da noite e o calor do lar de Onildes era quase palpável. Ana sentiu um nó na garganta. Era difícil manter a compostura.
"Onildes, minha irmã...", Dona Isaura começou, a voz cansada, mas com um tom urgente. "Aconteceu uma coisa terrível lá na roça. Uma confusão danada! Helicópteros, tiros... o campo virou uma praça de guerra de repente. A gente viu aqueles militares chegando e teve medo, muito medo." Ela olhou para Ana, um aviso silencioso em seus olhos.
Ana, captando a deixa, acrescentou, com a voz embargada e olhos arregalados, simulando um terror que não estava longe da verdade. "Foi assustador, Tia! Nunca vi nada igual. A gente pensou que ia morrer! A Mãe disse que precisávamos sair de lá, que não era seguro, que poderiam nos confundir, nos machucar."
Tia Onildes, que já era conhecida por seu coração mole e por se alarmar facilmente, levou as mãos à boca, chocada. Ela mal acompanhava as notícias da capital, imaginava o que acontecia na roça. "Céus! Helicópteros? Tiros? Mas o que está acontecendo nesse mundo, meu Deus? Que perigo! Que coisa horrível! Mas vocês fizeram certo em vir! Graças a Deus estão aqui! Minhas pobres meninas!" Ela as abraçou com força, apertando-as contra o peito macio. "Venham, venham! Sentem-se. Vou preparar um chá bem quentinho e vocês me contam tudo com calma. Onde já se viu! Onde se viu uma coisa dessas na nossa Minas Gerais!"
O relato, embora falso em seus detalhes mais cruciais, era convincente o suficiente. A Tia Onildes, com seu jeito simplório e preocupação genuína, absorveu a história da "confusão militar" como uma desculpa plausível para a fuga repentina. Era fácil para ela, que valorizava a paz, acreditar que a presença de veículos militares e tiroteios era motivo suficiente para abandonar a casa.
Enquanto Tia Onildes as guiava para a cozinha, resmungando sobre a violência dos tempos, Ana e Dona Isaura trocaram um olhar de alívio momentâneo. Haviam passado pela primeira barreira. Mas o alívio era frágil, uma fina camada sobre um mar de incertezas.
Na mesa da cozinha, enquanto Tia Onildes lhes servia xícaras de chá de ervas e fatias de pão com manteiga, o cheiro familiar da casa não conseguia afastar a nuvem escura que as seguia. Dona Isaura, mesmo exausta, já estava pensando no próximo passo.
"Temos que ser muito cuidadosas aqui, Ana", ela sussurrou quando Tia Onildes se afastou para pegar mais biscoitos. "Não podemos dar um pio sobre a pedra. Para ninguém. Nem para a Onildes. Ela tem um coração bom, mas não aguentaria o peso de um segredo desses. E na cidade, a gente tem olhos e ouvidos em todo lugar."
Ana assentiu, o chá em suas mãos tremendo levemente. Sua mente, apesar do cansaço, não parava. "Mas, Mãe, e a pedra? Os federais já devem ter chegado lá. E se eles encontrarem a água do riacho e desconfiarem? E se eles... a levarem? O que vamos fazer?"
"Não podemos fazer nada agora, minha filha", Dona Isaura respondeu, um brilho de impotência e raiva nos olhos. "Estamos seguras por um tempo, mas não podemos simplesmente voltar. Seria loucura. Primeiro, precisamos de um plano. De informações. E, acima de tudo, precisamos passar despercebidas."
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| Lembranças de criança |
Tia Onildes voltou, sorrindo, e colocou uma travessa de biscoitos de polvilho na mesa. "Comam, minhas filhas! Comam para recuperar as forças. E não se preocupem. Aqui vocês estão seguras. Ninguém vai incomodar vocês. E o que aconteceu lá na roça... isso logo vai virar notícia e ninguém vai duvidar da história de vocês. Tenho certeza!"
A falsa tranquilidade que Tia Onildes oferecia era um bálsamo, mas também uma gaiola. Elas estavam abrigadas, mas presas ao segredo, à mentira, e à incerteza do destino da pedra. Lá fora, o mundo já estaria girando em torno do mistério que haviam deixado para trás. Naquela noite, longe de sua casa, Ana e Dona Isaura sabiam que a verdadeira guerra pela pedra azul escura estava apenas começando. E elas, por ora, eram apenas espectadoras escondidas, aguardando o momento certo para lutar. O chalé de Onildes, acolhedor e seguro, era apenas um refúgio temporário, um ponto de partida para a jornada que se iniciava.
A questão agora era: como obter informações sobre o que estava acontecendo em seu quintal sem levantar suspeitas? E, mais importante, como agir para proteger a pedra antes que ela caísse nas mãos erradas, sabendo que "mãos erradas" pareciam vir de todas as direções? O tempo não estava a seu favor.
IA




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